Dando continuidade aos artigos anteriores onde abordei um
programa simples para a HP 12c para o cálculo de amortizações SAC e o
artigo onde sugeri uma fórmula direta para o cálculo de amortizações PRICE, hoje falarei sobre um tema bem mais complexo e polêmico que aflige vários juristas, economistas e bancos já faz um bom tempo. O anatocismo, a cobrança de juros sobre juros. Já li diversos artigos na internet, alguns de juristas outros de economistas, uma característica em comum que encontrei em todos eles é o desentendimento. E o grande vilão da história, sem dúvidas, é o sistema PRICE (parcelas constantes). Existem diversos artigos na internet com diversos autores alegando que o PRICE esconde a cobrança de juros sobre juros, alguns sugerem inclusive que deve ser substituído pelo sistema SAC, que segundo eles não ocorre capitalização de juros. Em contrapartida existem diversos outros autores que defendem que o sistema PRICE não capitaliza juros, uma vez que não são usados para o calculo dos juros posteriores, pois os juros são sempre calculados com base no saldo devedor.
Não vou analisar aqui a discussão da legitimidade de cobrar juros sobre juros, isto fica na esfera da Ética, o que o leitor precisa saber, no momento, é que a legislação brasileira, no geral, proíbe a incidência de juros sobre juros mensais, mas permite a capitalização anual.
Juros simples e juros compostos
Como é sabido, exitem duas formas de um credor cobrar juros de um devedor, juros simples e juros compostos. Os juros simples são aqueles em que a taxa de juros somente incide sobre o principal da dívida, ou seja, não há a cobrança de juros sobre juros. Os juros simples podem ser calculados da seguinte forma:
J = C * i * n
O montante a pagar (capital mais juros) pode ser calculado da seguinte forma:
M = C * (1 + i * n)
Onde:
J é o valor dos juros a pagar pela operação de crédito a juros simples.
C é o capital inicial tomado por empréstimo.
i é a taxa de juros do período.
n é o número de períodos a decorrer até o pagamento dos juros.
M é o valor total a pagar ao credor (capital mais os juros).
Já o montante a ser pago por uma operação de crédito a juros compostos é calculado pela seguinte fórmula:
A nomenclatura dos termos é idêntica à fórmula de juros simples. A diferença aqui é que o fator
n do tempo é exponencial e não linear.
Pois bem, vamos analisar como exemplo um empréstimo de 10.000,00 a ser pago em 5 meses à taxa de juros de 2% ao mês. Pelo calculo dos juros simples, o montante a ser pago no final de 5 meses é de 11.000,00, já pelos juros compostos o valor total a pagar será de 11.040,81. A diferença de 40,81 refere-se a cobrança de juros sobre juros, isto é, os juros do período anterior serão computados ao capital para fins de cálculos dos juros dos períodos futuros. Até aqui é muito fácil, para pagamentos únicos é evidentemente fácil identificar se houve cobrança de juros sobre juros.
Mas a partir do momento em que os indivíduos se deparam com séries de pagamentos (sistemas de amortização) ocorre um "
bug" no cérebro de diversas pessoas, incluindo autores, economistas, juízes e advogados e eles não conseguem mais chegar ao entendimento se ouve ou não cobrança de juros sobre juros, vou demonstrar. Segue abaixo dois fluxos de pagamento, os mais usados no mundo, o primeiro pelo sistema PRICE e o segundo pelo sistema SAC. Nos dois sistemas o prazo será de 5 meses à taxa de juros de 3,5% a.m e o valor emprestado será de 100.000,00:
Fluxo de pagamentos PRICE (parcelas constantes):
Fluxo de pagamentos SAC (amortizações constantes):
Analise os dois fluxos, você diria que o sistema PRICE utiliza juros compostos e o sistema SAC juros simples? Ou você diria que nos dois fluxos não há a incidência de juros sobre juros? Ou você entende que nos dois fluxos ouve a incidência de juros sobre juros? O que você me diz? "Bugou"?
Antes de responder esta pergunta e demonstrar matematicamente o porque, informo que nem mesmo entre os autores, economistas, juízes e advogados existe um consenso. O que é mais comum de se encontrar em artigos publicados é que o sistema PRICE cobra juros sobre juros e que o sistema SAC não cobra juros sobre juros. Vou tentar resumir os argumentos mais comuns:
- O sistema PRICE é baseado em uma progressão geométrica, caracterizando a incidência de juros exponenciais. O sistema SAC é baseado em uma progressão aritmética, caracterizando a incidência de juros lineares.
- No sistema SAC paga-se menos juros totais do que no sistema PRICE, pois os juros não são capitalizados.
- A própria fórmula de calculo da parcela PRICE oculta uma exponenciação que capitaliza os juros, o que não ocorre no sistema SAC onde o capital é amortizado a valor constante.
Antes de prosseguir com as minhas explicações, asseguro desde o início, estes três argumentos estão errados. Na verdade os dois sistemas possuem o mesmo custo financeiro, uma vez que a taxa de juros é a mesma. A diferença em relação ao montante de juros pagos deve-se ao sistema SAC ter pagamentos maiores no início do período.
Sobre a pergunta se algum destes sistemas utiliza juros compostos, a resposta é que os dois utilizam juros compostos. Na verdade, qualquer sistema de amortização usado na atualidade é baseado em juros compostos. "
Bugou" de novo?
Para ficar mais fácil explicar, analise os dois fluxos abaixo:
Fluxo de amortização A:
Fluxo de amortização B:
Nos dois fluxos foi utilizado a mesma taxa de juros de 3,5% a.m, empréstimo no valor de 100.000,00 e prazo de pagamento de 5 meses. A diferença entre eles refere-se ao valor das parcelas. No fluxo A, as parcelas foram compactuadas de maneira totalmente irregular, em um mês paga-se mais, em outro paga-se menos. No fluxo B, as parcelas foram calculadas levando à valor futuro parcelas iguais do capital, no caso 20.000,00.
O que eu quero que vocês entendam é que estes 4 fluxos de amortização são equivalentes, pois possuem a mesma taxa de juros.
Agora atentem para a coluna de valor presente da parcela dos quatro fluxos apresentados, PRICE, SAC, fluxo A e fluxo B. O valor presente foi calculado com base na formula do montante para juros compostos. Agora você pode estar se perguntando: Se você utilizou a fórmula de montante de juros compostos então os quatro sistemas são baseados em juros compostos? Sim, isso mesmo. Porém essa evidenciação não é tão simples assim. Assim como a resposta para a vida o universo e tudo mais, o problema não está na resposta em si, mas na pergunta certa que deve ser feita.
Muitos autores argumentam que em nenhum destes sistemas houve a cobrança de juros sobre juros, uma vez que, em cada período houve o pagamento integral dos juros, o que não permitiu que os referidos juros fossem integrados ao valor do capital e por consequência os mesmos não foram computados para o cálculo dos juros em períodos futuros. É um argumento poderoso, e convence muita gente. Mas falta um pressuposto básico, algo que não é discutido, a pergunta certa: Mas os juros devem incidir sobre o saldo devedor? Ou sobre o valor relativo do capital inicial que cada parcela representa?
Esse pergunta pode parecer idiota (desculpe o mal termo), muitos professores e economistas vão pular em suas cadeiras e gritar aos berros: "É obvio que é sobre o saldo devedor, você não sabe de nada do que está falando". Afirmo, os juros são calculados sobre o componente relativo do capital em cada parcela. Os juros calculados sobre o saldo devedor total, imediatamente irá capitalizá-los, mesmo que sua totalidade tenha sido paga na parcela, isso já interferiu no calculo dos demais juros, sempre resultando em juros compostos, isto é juros sobre juros. A maneira correta é calcular os juros sobre os componentes do capital emprestado correspondentes em cada parcela, assim você poderá escolher se deseja manter a capitalização de juros compostos ou se deseja calcular em juros simples.
Voltemos ao exemplo do fluxo B, que é mais fácil, pois o valor presente das parcelas é constante. Imagine que eu tenha pegado um empréstimo de 100.000,00 de um parente meu, por isso ele não me cobrou juros, vou pagar 5 parcelas de 20.000,00 iguais. Ouve um problema, briguei com o parente e ele resolveu me cobrar juros compostos de 3,5% ao mês. Porém ao invés de montar aquele fluxo de amortização, ele fez os cálculos como devem ser feitos e levou cada uma das parcelas que eu o devia a valor futuro, na data do pagamento. Veja:
Parcela1 = 20.000 * (1+0,035)^1 = 20.700,00
Parcela2 = 20.000 * (1+0,035)^2 = 21.424,50
Parcela3 = 20.000 * (1+0,035)^3 = 22.174,36
Parcela4 = 20.000 * (1+0,035)^4 = 22.950,46
Parcela5 = 20.000 * (1+0,035)^5 = 23.753,73
Perceberam que o fluxo de pagamentos é idêntico ao do quadro de amortização anterior? Ouve de fato a cobrança de juros sobre juros. A única situação em que essas parcelas de capital serão pagas sem a incidência de juros sobre juros é se o valor futuro delas for calculado a juros simples:
Parcela1 = 20.000 * (1+0,035 * 1) = 20.700,00
Parcela2 = 20.000 * (1+0,035 * 2) = 21.400,00
Parcela3 = 20.000 * (1+0,035 * 3) = 22.100,00
Parcela4 = 20.000 * (1+0,035 * 4) = 22.800,00
Parcela5 = 20.000 * (1+0,035 * 5) = 23.500,00
Agora veja incongruência, se você for em 5 bancos diferentes e pegar 5 empréstimos de 20.000,00 pagando cada um deles em parcelas únicas, uma em cada banco, uma em cada mês, provavelmente os bancos não irão lhe cobrar os valores de 20.700,00; 21.424,50; 22.174,36; 22.950,46; 23.753,73 cada um, pois ficará evidente que foi cobrado juros sobre juros, e existem vários advogados dispostos a lhe auxiliar juridicamente nisso. Mas se você for em um único banco e pegar o valor total dos 100.000,00, o banco poderá montar este fluxo de amortização e ninguém vai reclamar, pois quando os juros compostos estão embutidos em um fluxo de amortização o cérebro de todo mundo "
buga" e ninguém enxerga os juros compostos. O mesmo raciocínio vale para qualquer fluxo de amortização onde os juros do período incidem sobre o saldo devedor total e não somente sobre os componentes relativos do capital inicial em cada parcela.
Voltemos ao exemplo PRICE, nele o valor do capital é dividido entre as parcelas de modo que os juros sobre juros em cada pagamento ao somar-se ao capital faz com que todas as parcelas fiquem com valor constante. Veja (os valores de cada capital inicial foram extraídos da coluna de valor presente do quadro PRICE):
Parcela1 = 21.399,17 * (1+0,035)^1 = 22.148,14
Parcela2 = 20.675,52 * (1+0,035)^2 = 22.148,14
Parcela3 = 19.976,35 * (1+0,035)^3 = 22.148,14
Parcela4 = 19.300,82 * (1+0,035)^4 = 22.148,14
Parcela5 = 18.648,14 * (1+0,035)^5 = 22.148,14
Perceberam a capitalização composta dos juros? Segue abaixo o mesmo raciocínio usando os valores da tabela SAC (os valores de cada capital inicial foram extraídos da coluna de valor presente):
Parcela1 = 22.705,31 * (1+0,035)^1 = 23.500,00
Parcela2 = 21.284,04 * (1+0,035)^2 = 22.800,00
Parcela3 = 19.932,93 * (1+0,035)^3 = 22.100,00
Parcela4 = 18.648,86 * (1+0,035)^4 = 21.400,00
Parcela5 = 17.428,84 * (1+0,035)^5 = 20.700,00
Isso irá se repetir para qualquer que seja o sistema de amortização onde os juros a pagar do período são calculados aplicando-se a taxa de juros sobre o saldo devedor total ao invés de somente valor relativo de cada parcela. Repetindo, um fluxo de amortização somente fluirá sem cobrar juros sobre juros, se o fluxo for calculado partindo do capital presente de cada parcela e levá-lo a valor futuro a juros simples.
Demonstrado esse fato, o leitor pode questionar, então como seria um fluxo de pagamentos a parcelas constantes que respeita os juros simples? Istó é, que não cobra juros sobre juros?
É possível criar um fluxo de parcelas constantes calculado a juros simples, porém ao contrário do que era de se esperar, o cálculo é mais complexo do que o calculo da parcela de PRICE.
Esse fluxo deverá respeitar o princípio de que trazendo-se as parcelas a valor presente a juros simples (não juros compostos) igualam-se ao capital inicial. Vamos considerar a mesma situação de um capital de 100.000,00 pelo prazo de 5 meses a taxa de juros de 3,5% a.m, porém agora a juros simples:
Encontramos que o valor da parcela de um fluxo de amortização que obedece aos juros simples nesse exemplo específico é de 22.055,59. A fórmula geral do cálculo da parcela constante para qualquer operação de crédito pode ser assim deduzida:
Onde:
C é o capital inicial.
i é a taxa de juros
j é o índice do somatório, que identifica o valor inicial, chamado limite inferior.
n é o limite superior, que neste caso, é o numero total de parcelas, o índice
j irá percorrer todos os valores inteiros, partindo do limite inferior até o limite superior.
Retornando ao valor da parcela de 22.055,59, vamos encontrar os valores presentes do capital inicial a juros simples que elas representam:
O cálculo apresenta uma diferença de 0,01 centavos devido aos arredondamentos, diferença irrelevante.
Em resumo, um empréstimo de 100.000 à juros de 3,5% a.m, pelo prazo de 5 meses à parcelas constantes e sem a incidência de juros compostos, na prática o devedor e o credor combinaram entre si que serão realizados pagamentos mensais do capital emprestado nos valores: 21.309,75; 20.612,70; 19.959,81; 19.347,01 e 18.770,72; totalizando os 100.000,00 emprestados, sendo que, estas parcelas serão atualizadas pelos juros simples contratados de 3,5% a.m.:
Parcela1 = 21.309,75 * (1+ 0,035 * 1) = 22.055,59
Parcela2 = 20.612,70 * (1+ 0,035 * 2) = 22.055,59
Parcela3 = 19.959,81 * (1+ 0,035 * 3) = 22.055,59
Parcela4 = 19.347,01 * (1+ 0,035 * 4) = 22.055,59
Parcela5 = 18.770,72 * (1+ 0,035 * 5) = 22.055,60
A diferença de 0,01 centavo na ultima parcela deve-se a arredondamentos.
Volto à ressaltar que não discuto aqui se é ético ou não cobrar juros sobre juros, o que critico e tento elucidar são os erros de diversos autores e juristas que promulgam o desentendimento de teorias matemáticas.
Espero que tenha ajudado, obrigado pelo interesse e pela paciência.